Michael Boatwright, encontrado inconsciente num quarto de hotel em Palm Springs, no estado da Califórnia (EUA), acordou num hospital dessa mesma cidade falando apenas sueco. Notícias sobre o estranho caso de perda de memória de Michael tem tido grande repercussão nos Estados Unidos, Reino Unido e Suécia nos últimos dias. O veterano da Marinha de 61 anos não se reconhece em fotos e identificações, e não tem memória de quem foi um dia.
Ele foi diagnosticado como um caso de Amnésia Global Transitória, uma incapacidade de fazer novas memórias – espécie de apagão que pode levar as pessoas a vaguear longe de casa e criar novas identidades.
Embora detalhes sobre o caso específico de Boatwright ainda sejam bastante obscuros, confira um resumo do que se sabe sobre essa condição.
O que realmente é Amnésia?
Existem duas categorias principais de amnésias: aquelas causadas por trauma físico no cérebro, e as causadas por uma questão psicológica.
Amnésticos reais raramente esquecem os seus próprios nomes. A amnésia orgânica é causada por danos no cérebro, como convulsões, inflamação cerebral ou doenças como Alzheimer. Muito do que sabemos sobre a condição vem de um paciente famoso conhecido pelas iniciais HM, um dos objetos de pesquisa mais importantes nas ciências do cérebro. Ele foi submetido a uma cirurgia para tratamento de convulsões epilépticas graves na década de 1950, e devido à remoção de parte do lobo temporal medial do cérebro, exibiu profunda amnésia para o resto de sua vida.
Ele não podia formar novas memórias, embora pudesse se lembrar de detalhes dos 27 anos de sua vida antes da cirurgia. Os casos de amnésia orgânica não costumam fazer as pessoas esquecem quem são, mas as deixam com dificuldade em armazenar memórias recentes.
Uma Amnésia Psicogênica, por outro lado, ocorre sem dano estrutural para o cérebro. Ela pode ser causada por estresse mental ou emocional. Um estado de fuga indica ser uma forma de amnésia psicogênica.
Uma fuga do quê?
Um estado de fuga, por vezes referido como uma fuga dissociativa ou fuga psicogênica, é um transtorno dissociativo, ou seja, que provoca uma ruptura no funcionamento normal da memória, identidade, percepção, etc. É um ataque de amnésia temporária, geralmente com duração de alguns dias ou talvez semanas, que muitas vezes induz alguém a largar tudo o que está fazendo, se afastando de casa ou do trabalho.
A pessoa, então, acorda em um lugar diferente, sem saber de quem é ou como chegou lá, como aconteceu com Boatwright. O aparecimento de um estado de fuga tem sido associado com formas intensas de estresse. Um exemplo é o caso de um estudante de medicina de 28 anos de idade, na Nigéria, que, confrontado com a extrema pressão econômica e acadêmica, desmaiou enquanto estudava sozinho em seu quarto numa noite e voltou a si na casa de seu irmão, a quase 400 quilômetros de distância.
Um estudo de 1999 em relatórios psicológicos descreveu o estado de fuga como “um dos menos comum e, certamente, o menos estudado transtorno dissociativo”. É uma doença bastante rara, afetando cerca de 0,2% da população, de acordo com a ISSTD (Sociedade Internacional para Estudo de Trauma e Dissociação). Por causa de sua relação com o estresse, os casos tendem a aumentar durante desastres naturais ou guerras.
Então, o que é amnésia global transitória?
Amnésia global transitória (TGA na sigla em inglês) – da qual Boatwright também foi diagnosticado com – é caracterizada por uma incapacidade temporária de fazer novas memórias sem qualquer outra disfunção neurológica nublando a consciência, percepção ou identidade. Os pacientes permanecem alertas, fazendo um monte de perguntas repetitivas sobre a sua situação como “O que estou fazendo aqui?”, logo em seguida esquecendo as respostas. Cerca de 5 em cada 100 mil pessoas são afetadas por TGA.
Depois de uma média de quatro a seis horas, a capacidade para recordar informações novas geralmente volta. Isso pode acontecer apenas uma vez na vida de uma pessoa, embora em casos raros, pode se repetir.
A causa precisa ainda é contestada, mas pode ser desencadeada por estresse e pressões físicas ou psicológicas, e geralmente afeta pessoas com mais de 60 anos, de acordo com um estudo de 2012 na revista The Lancet. “Um grande número de ataques de TGA seguem uma série de potenciais fatores precipitantes e atividades, tais como o exercícios físicos extenuantes, relações sexuais, banhos ou chuveiros com extremos de temperatura, estresse emocional, ou dirigindo um veículo, procedimentos médicos, etc”. Então, existem muitas causas potenciais.
OK, mas como é que explicam o sueco?
Boatwright mudou para a Suécia em 1980 e aprendeu a falar sueco, de acordo com o Aftonbladet, um jornal sueco que pegou a história.
“Amnésia não costuma causar uma perda da linguagem”, diz Gordon, embora os danos cerebrais possam levar a dificuldades de linguagem. Da mesma forma, um estudo de 2012 conduzido pelo “Journal of the American Medical Association Neurology” em três pacientes com amnésia global transitória descobriu que não poderia haver potencialmente uma relação entre a TGA recorrente e a afasia progressiva primária, uma degeneração da linguagem e capacidade de fala. Os pacientes estudados precisaram se esforçar para encontrar as palavras certas e nomear objetos corretamente. No entanto, alguns relatórios descrevem pacientes que, como Boatwright, ainda podiam falar bem, só não sua língua nativa.
Notoriamente, há o caso de Anna O., uma jovem austríaca cujo tratamento levou ao surgimento da “terapia da conversa” no século 19. Após a morte de seu pai, ela sofreu uma série de problemas psiquiátricos que a levaram, entre outras coisas, a uma incapacidade de falar sua língua nativa. Ela falava inglês e ainda pode ler em francês e italiano, mas perdeu o comando sobre sua primeira língua, o alemão.
Mais recentemente, um estudo de 2004 em neuropsicologia detalhou o caso de um homem alemão de 33 anos que foi internado em um hospital psiquiátrico alegando nenhuma memória de sua identidade ou localização. FF, pseudônimo, falava inglês com sotaque e dizia não ter capacidade de entender ou sequer falar sua língua nativa. Ele havia desaparecido de sua casa na Alemanha, quatro meses antes.
Menos de uma semana depois que ele recebeu alta do hospital, voltou para a Alemanha, e seu pai informou que ele podia se comunicar em alemão, embora fosse “um pouco não fluente”. O estudo observou que, mesmo alegando nenhum conhecimento de alemão, o paciente teve habilidade para reter o conhecimento implícito de fatos autobiográficos e da estrutura associativa ou semântica da língua alemã.
Os autores observaram dificuldade em avaliar o quanto do idioma ele realmente perdeu.
É muitas vezes difícil distinguir entre uma amnésia que poderia ser “real” de uma fingida, assim como muitas vezes é impossível ter certeza se uma amnésia é orgânica ou psicogênica. Pode até ser o caso de uma amnésia dissociativa aparente ter aspectos reais e inventados. Ter certeza absoluta de qualquer diagnóstico de amnésia dissociativa ou estado de fuga é, na maioria dos casos, extremamente problemático. [POPSCI]
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