sábado, 14 de setembro de 2013

Portugal: Tudo sobre a proposta de reforma do IRC e como os mais pobres o vão pagar para as grandes empresas continuarem a lucrar bilhões

Sobre a proposta de reforma do IRC


No final de Julho, a Comissão de Reforma do IRC apresentou o seu relatório final, onde constam alterações profundas ao regime de tributação das empresas e dos rendimentos de capital.

A reforma do IRC foi anunciada como imprescindível à competitividade do tecido empresarial português, para o desenvolvimento económico e para a criação de emprego. 

No fundamental, a reforma foi concebida com vista à redução dos impostos pagos em sede de IRC, à diminuição das obrigações fiscais das empresas, e a reposicionar Portugal como "um país exportador de capitais", como consta no próprio relatório. Resumindo: um país com baixa produção, mas de muitos serviços, sobretudo financeiros, onde os capitais estrangeiros e nacionais podem circular livres de impostos. 

I. Observações na generalidade

A reforma do IRC no quadro de uma política de austeridade 

O ante-projecto de Reforma do IRC surge num contexto em que o Governo defende o corte de salários, de pensões e de prestações como o caminho inevitável para o equilíbrio das finanças públicas e para o crescimento económico, sob o falso argumento de que as receitas do Estado não são suficientes para pagar as funções sociais que temos. No entanto, as propostas implicam elevadas perdas fiscais para o Estado. 

A descida da tributação das empresas proposta levanta assim uma questão fundamental: a de saber como será compensada a perda de receita fiscal e a quem será apresentada esta factura. A resposta é previsível: aos mesmos de sempre, aos trabalhadores e aos pensionistas, aos que menos têm e menos podem, ao mesmo tempo que os lucros das grandes empresas e grupos económicos e financeiros aumentam exponencialmente. 

A política de austeridade agravou já a injustiça na repartição social da tributação, penalizando os assalariados e os reformados. Por exemplo, o brutal aumento do IRS em 2013 tornou mais desequilibrada a relação entre a tributação por via do IRS e a relativa ao IRC (Gráfico 1). Com esta proposta, a relação tornar-se-ia ainda mais desequilibrada e injusta. 


Taxas nominais e taxas efectivas de imposto 

A CGTP-IN considera que a opinião pública não tem sido devidamente informada sobre as taxas de imposto pagas pelas empresas. A Comissão sublinha a taxa nominal máxima de IRC de 31,5%, que diz ser das mais elevadas na Europa. Omite, no entanto, que está a incluir a derrama estadual, que se aplica somente a empresas com lucros superiores a 1,5 milhões de euros, a qual só é paga por 0,5% das empresas (Anexo 1). 

Mais importante, porém, são as taxas efectivamente pagas pelas empresas. Os dados mais recentes (2011) mostram um quadro bem diferente do apresentado pela Comissão: uma taxa efectiva de 17% [1] , a qual é mais elevada (22%) nas empresas de menor dimensão [2] que nas grandes empresas (15%). 

Taxas de IRC em 2011 %
Taxa nominal máxima 31,5
Taxa nominal máxima (sem derrama) 25
Taxa efectiva 17
Facturação acima de 250 milhões € 15
Facturação até 1 milhão € [*] 21,7
Fonte: AT 

[*] média simples dos três primeiros escalões de volume de negócios

Elevada perda de receita do Estado e erosão da base fiscal 

No global, a Comissão avalia que a partir do momento da total aplicação da reforma de IRC (2018) se verifique uma perda anual de receita até 1 423 milhões de euros [3] . No entanto, a perda de receitas fiscais pode atingir valores muito superiores, uma vez que a Comissão não avaliou o impacto de várias medidas e subvalorizou outras. 

O traço principal desta proposta de reforma é a imediata descida da tributação sobre as empresas. Não só as taxas de IRC serão directamente reduzidas, como estão previstas outras medidas, que podem parecer de somenos mas que foram cuidadosamente pensadas, que implicam um desagravamento fiscal das empresas. Aqui se incluem o alargamento do período de reporte de prejuízos fiscais dos 5 para os 15 anos; alterações ao regime de tributação de grupos de sociedades, permitindo aumentar o número de empresas abrangidas pelo regimes e com os seus eventuais prejuízos diminuir a matéria colectável do grupo; isenção das mais e menos valias, deduzindo-as ao lucro tributável, etc. etc.. No seu conjunto, as propostas implicam uma erosão da base fiscal e consequente perda de receitas do Estado. 

Algumas destas propostas, e os objectivos que pretendem alcançar vão inclusive em sentido contrário a algumas das recomendações que a OCDE tem feito, em vários dos seus documentos publicados [4] . Assim, orientações como a regulação mais apertada para o regime de preços de transferência, uma maior e mais alargada prestação de informação fiscal de forma a aumentar a transparência e combater práticas fiscais prejudiciais, limitar a erosão fiscal por via de sucessivas deduções [5] , entre outras, são contrariadas por várias das matérias do relatório de reforma. 

Um estudo recente [6] aponta para que, em 2011, tenham sido deslocados 2 500 milhões de euros de lucros para a Holanda, onde os maiores grupos económicos portugueses (19 grupos económicos num total dos 20 cotados no PSI-20) criaram empresas "caixas de correio", sem qualquer actividade económica. Não sendo este o valor da evasão fiscal em Portugal, é um indicador do desvio de lucros do território onde foram realizados, e um pré-requisito para a evasão, uma vez que as empresas conseguem mais facilmente manipular as receitas e despesas fiscais, reduzindo a base tributária que declaram à AT. 

As propostas da Comissão estão muito longe de procurarem amenizar o problema do desvio dos rendimentos de capital para outro país. Bem pelo contrário, estabelece como objectivo que Portugal se aproxime de um local de trânsito financeiro de capital, à semelhança da Holanda, sem qualquer benefício para o país. 

Por outro lado, o Governo não se tem cansado de repetir que são necessários sacrifícios. Fica claro, uma vez mais, que os sacrifícios não são para todos, considerando que a enorme perda de receitas fiscais convive em simultâneo com o tão falado corte de 4,7 mil milhões na despesa pública, ainda pendente sobre o povo português. 

O IRC e a competitividade 

O tão propalado argumento de que a reforma é necessária para fins de competitividade da economia portuguesa é falacioso. Como veremos mais à frente (parte II), a esmagadora maioria das medidas propostas beneficia apenas uma pequena parte das empresas: os grandes grupos económicos, muitos deles estrangeiros, que representam menos de 1% do total de empresas em Portugal, e apenas cerca de 30% do emprego [7]-, além de que não responde aos principais obstáculos à actividade das empresas. 

A visão da Comissão sobre a competitividade é redutora. Esta não tem em conta que, para a maioria das empresas, o problema fundamental reside na falta de consumo e deterioração das perspectivas de venda [8] (gráfico 2); ignora a finalidade redistributiva dos impostos; esquece os aspectos qualitativos da competitividade (qualidade dos produtos, inovação, melhor justiça, diminuição da burocracia, acesso ao crédito, etc.). E, no entanto, são nestes aspectos qualitativos que as economias mais competitivas apostam. 


O IRC e a atracção de investimento directo estrangeiro 

Contrariando os argumentos usados no ante-projecto, verifica-se que o IRC não é o motor de atracção do investimento directo estrangeiro (IDE). Comparando as entradas de IDE (em % do PIB) com a taxa de IRC, verifica-se não haver correlação entre ambas nos países da OCDE (gráfico 3), sendo que a muitos dos países apresenta IRC inferior à média da OCDE mas níveis de IDE muito abaixo de Portugal [9]


O interesse em atrair investimento directo estrangeiro (IDE) não é algo de novo, nem estas medidas podem ser apresentadas como o "grande passo" na atracção de investimento transnacional. Nos últimos anos têm sido várias as alterações às normas que regem a tributação das entidades não-residentes – nomeadamente concedendo um conjunto largo de isenções fiscais, actualmente em vigor -, concedendo ainda a possibilidade de empresas estrangeiras com grandes projectos de investimento usufruam de benefícios fiscais negociados em acordos específicos a cada uma dessas empresas. 

Somam-se ainda vários incentivos financeiros e fiscais ao investimento, dos quais também as empresas multinacionais podem usufruir. Em Junho deste ano entrou em vigor o "super crédito fiscal ao investimento", que permite que as grandes empresas atinjam taxas gerais efectivas de 7,5%[10] , tendo ainda sido alteradas disposições do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento e dos Benefícios Fiscais ao Investimento de Natureza Contratual, de forma a torná-los mais atractivos a grandes investidores, nacionais e estrangeiros. 

Uma vez que a maioria das alterações propostas no ante-projecto são direccionadas aos rendimentos de carácter financeiro (mais-valias, rendimentos de fundos de investimento, juros, royalties, etc.), e que a possibilidade de redução da taxa de IRC já é atribuída por via do Pacote Fiscal ao Investimento 2013, é seguro dizer que estas medidas não atrairão o investimento necessário a Portugal: o investimento produtivo, criador de emprego e riqueza e que impulsione o desenvolvimento económico. 

Tão-pouco estas são propostas impulsionadoras da criação de emprego. A Comissão de Reforma não apresenta qualquer panorama concreto e quantificado de aumento do emprego, não existindo qual garantia de que as empresas vão criar novos postos de trabalho – até porque a redução da base fiscal de cada uma lhes é oferecida sem qualquer contrapartida. 

A possibilidade de haver criação de emprego torna-se ainda menos verosímil quando se verifica que as propostas não só porque visam atrair e isentar rendimentos que não acrescentam riqueza ao tecido produtivo português, como também visam promover a internacionalização de empresas para fora do território nacional – o que não irá, obviamente, criar postos de trabalho em Portugal. Conclusão que é corroborada pelo estudo "Efeitos no investimento directo exterior sobre a Balança Comercial Portuguesa, 1996-2007", onde consta que o investimento directo estrangeiro de Portugal no estrangeiro é sobretudo de substituição (as empresas deixam de produzir cá para passar a produzir no exterior), o que conduz à "degradação do saldo da balança comercial" e a não criação de novo emprego [11].

A reforma proposta perverte os objectivos do sistema fiscal 

De acordo com a Comissão, a política fiscal deixou de ter como objectivo e função a promoção da equidade e a redistribuição de rendimentos, para passar a funcionar como instrumento de competitividade e, consequentemente, como fórmula mágica para a imediata potenciação do crescimento económico e da criação de emprego. 

O argumento é claramente contrário aos objectivos da justiça social e da repartição do rendimento que, de acordo com a Constituição da República Portuguesa, são a finalidade do sistema fiscal: 

"O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza." (Artigo 103º, nº1 da CRP)

Princípio igualmente plasmado no artigo 5º da Lei Geral Tributária:

"1 – A tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento. 
2 - A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material."

A elevada e crescente desigualdade na distribuição do rendimento em Portugal reforça a necessidade de a política fiscal visar os objectivos redistributivos patentes na CRP. 

A Proposta apresenta-se desarticulada do restante sistema fiscal 

A ante-projecto de Reforma apresenta-se desarticulada do restante sistema fiscal, isolando este imposto específico – o IRC – e ignorando por completo o seu relacionamento com outros impostos no quadro do sistema fiscal português e consequentemente os efeitos e repercussões que as alterações propostas poderão ter no próprio sistema. 

A política fiscal parece ficar resumida ao IRC, ignorando-se por completo outros impostos, nomeadamente o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, cujo brutal agravamento, a par da redução dos salários, pensões e outras prestações sociais, está a contribuir para esmagar os orçamentos familiares, provocando a depressão da procura interna e a redução do consumo; ou ainda o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), imposto indirecto que onera o consumo, e em que o agravamento das taxas sobre bens essenciais também tem contribuído para sobrecarregar o orçamento das famílias; ou, finalmente, os aumentos em sede de IMI, que atendendo à estrutura do nosso mercado habitacional baseado na propriedade das casas de morada de família, contribui também para o deterioração da situação económica e social. 


II. Principais aspectos da proposta de Reforma do IRC

Diminuição da taxa do IRC 

Partindo da taxa de IRC máxima, 31,5% (taxa nominal de 25% + derrama municipal de 1,5% + taxa máxima de derrama estadual de 5%, para lucros superiores a 7,5 M€), a Comissão propõe uma redução substancial da taxa de IRC e a eliminação das derramas estadual e municipal. 

A contextualização da proposta deixa de fora elementos fundamentais. Em primeiro lugar, não refere que 44% das empresas não paga IRC, tendo este número crescido progressivamente ao longo dos anos. Mesmo quando acrescentamos as empresas que procedem ao Pagamento Especial por Conta (PEC), verifica-se que 29% das empresas não faz qualquer pagamento ao Estado. Em segundo lugar, o estudo não refere que a taxa efectiva de IRC tem vindo a reduzirse, registando 17% em 2011 [12] , com as maiores empresas a pagarem de taxa efectiva apenas 15%. Por último, e sobre a derrama estadual, é importante clarificar que esta só é paga por 0,5% das empresas, o que correspondes àquelas que apresentam lucro tributável superior a 1,5 milhões de euros (taxa de 3% para lucros entre 1,5 e 7,5 milhões de euros, e 5% se o lucro tributável for superior). Sendo o tecido empresarial português composto sobretudo por micro e pequenas empresas, a maioria fica excluída deste imposto (Anexo I). 

É preciso ainda ter em conta que a derrama estadual foi introduzida em sede de IRC em contraponto à sobretaxa adicional de IRS, ambas justificadas pela situação de emergência económica e financeira e pela necessidade de todos os contribuintes participarem no esforço de equilíbrio das contas públicas; assim sendo, quando se preconiza a eliminação da derrama estadual de IRC sobre as empresas de maiores lucros, deveria preconizar-se em simultâneo a eliminação da sobretaxa adicional de IRS. 

A Comissão apresenta três cenários de redução progressiva da taxa de IRC: 19%, 18% ou 17%. Em termos nominais, esta proposta representa uma descida da taxa nominal entre 7,5 e 9,5 p.p. para as PMEs [13] e entre 12,5 e 14,5 p.p. para as grandes empresas. Acresce que todas as alterações propostas ao nível das deduções e benefícios fiscais são para reduzir o rendimento colectável, o que significa que a taxa efectiva de IRC continuará a ser muito inferior à taxa nominal. Com claros benefícios às grandes empresas e grupos económicos, que já hoje são tributadas a taxas efectivas muito inferiores ao estabelecido na lei (15% contra a taxa nominal de 25%, dados de 2011). 

Assumindo uma descida da taxa de IRC para 19% em 2018, a Comissão prevê a diminuição das receitas fiscais em cerca de 220 milhões de euros já no próximo ano, cumprindo-se a primeira fase da descida da taxa (de 25 para 23%). Perda de receita que vai crescendo à medida que a taxa de imposto vai sendo reduzida, o que representa uma perda total de mais de 1 200 milhões de euros em 2018, segundo as previsões da própria Comissão. Isto se se verificarem os pressupostos de atracção do investimento – o que levanta muitas dúvidas, tendo em conta que o principal obstáculo ao investimento é a deterioração de perspectivas de venda, e continuará a sê-lo enquanto se promover o definhamento do mercado interno. 

A par da redução da taxa de IRC, a Comissão propõe o aumento da tributação dos dividendos em sede de IRS. Porém, o que a realidade nos mostra é que a esmagadora maioria dos lucros distribuídos pelas empresas não é tributado: comparem-se os 15 000 milhões de euros distribuídos[14] em 2011, com os 65 milhões de euros declarados como rendimentos de capital em sede de IRS no mesmo ano, o que põe a nu o logro desta proposta. 

De qualquer forma, o aumento da tributação dos dividendos em sede de IRS só poderia revelar alguma eficácia em termos de justiça fiscal, se a reforma proposta abrangesse igualmente o IRS, prevendo nomeadamente o englobamento obrigatório de todos os rendimentos auferidos pelo sujeito passivo, incluindo os rendimentos de capital e mais valias. 

Regime Simplificado para as micro, pequenas e medias empresas 

A Comissão propõe a criação de um regime simplificado para as micro, pequenas e médias empresas. Neste regime, a matéria colectável será calculada pela aplicação de coeficientes sobre as vendas, serviços prestados, e outros rendimentos, tendo sido definido uma matéria colectável mínima de 60% do valor anual da retribuição mensal mínima garantida, 4 074€ – o que, aplicando uma taxa de 25% de IRC, resultaria num imposto mínimo a pagar de 1018,5€, ligeiramente acima do Pagamento Especial por Conta mínimo actualmente em vigor (1000€). 

As empresas que optem pelo Regime Simplificado ficam obrigadas às normas de facturação simplificada; as que não o façam, e continuem abrangidas pelo regime do PEC, vêem o seu valor mínimo agravado para os 1500€. No conjunto, a Comissão prevê que o Estado venha a arrecadar mais 36,2 milhões de euros [15] às custas das micro e pequenas empresas. 

Fica assim claro que esta reforma do IRC não visa benefíciar as mPMEs, que representam mais de 90% do tecido empresarial português. 

Politica Fiscal Internacional 

A alteração da política fiscal internacional é uma das matérias fundamentais para a Comissão para a Reforma do IRC. Quer nas palavras dos representantes do Ministério das Finanças, quer pelo que consta da proposta, está clara a intenção de transformar Portugal numa "plataforma giratória" de capitais, que possam entrar e sair do país sem pagar qualquer imposto nem trazer qualquer benefício em termos de desenvolvimento económico ou de criação de emprego. 

Em concreto, a Comissão propõe "a eliminação ou redução significativa da taxa máxima aplicável aos dividendos a auferir por sociedades residentes", e a eliminação das retenções na fonte para os dividendos, juros e outros rendimentos de capital. O objectivo é introduzir em Portugal um regime de participation exemption, que mais não é do que um regime que isenta do pagamento de impostos todos os rendimentos do capital em sede de IRC, sejam eles dividendos ou mais valias, não só para as empresas nacionais como para as empresas transnacionais. São ainda incluídas outras alterações, cirurgicamente concebidas, para alargar o leque de rendimentos de capital e empresas abrangidas pelo regime de isenção [16]

Avançando com maior detalhe no ante-projecto de reforma, percebemos que este elimina, inclusive, os poucos incentivos ao reinvestimento de mais-valias que o CIRC actualmente prevê, denunciando que o investimento produtivo e o crescimento económico são as menores preocupações da Comissão e do Governo. 

Esta proposta, que nos faz ultrapassar a Holanda ou Luxemburgo em termos de isenções fiscais aos rendimentos do capital, a par da redução das obrigações declarativas das empresas, vai precisamente contra as recomendações da OCDE e do FMI para o combate aos esquemas usados pelas multinacionais para reduzir a sua base tributária [17] . Os principais beneficiários do regime de participation exemption serão as grandes empresas e grupos económicos, quer nacionais quer estrangeiros, e, a concretizar-se, reduzirá a base fiscal e determinará a diminuição das receitas do Estado. 

Alargamento do regime de dedução dos prejuízos fiscais 

A Comissão propõe que os prejuízos apurados num determinado período de tributação possam ser deduzidos aos lucros nos 15 anos seguintes, alargando o prazo de 5 anos actualmente em vigor. 

O único argumento utilizado pela Comissão é de que existem países na União Europeia com períodos de reporte mais alargados – esquecendo-se de referir que os limites à dedução são muito inferiores aos praticados em Portugal (50% do lucro tributável em Espanha e em França, por exemplo, contra os 75% em Portugal). 

De novo, são as grandes empresas que usufruirão desta medida. A grande maioria das empresas portuguesas não consegue suportar elevados prejuízos, sendo-lhes então indiferente o período de dedução dos mesmos. Já para grandes empresas, que por métodos de engenharia fiscal conseguem aumentar os prejuízos fiscais a deduzir, esta alteração vai directamente ao encontro dos seus desejos: veja-se que, em 2011, os prejuízos fiscais declarados por cada empresa com volume de negócios superior a 250 milhões de euros foi, em média, de 114 milhões de euros (contra a média de 60 mil euros de cada micro e pequena empresa a declarar prejuízos fiscais em 2011). O alargamento do prazo para a dedução de prejuízos fiscais irá acrescentar assim mais uma forma de reduzir o montante de IRC a pagar ao Estado. 

Esta proposta implicará a redução das receitas fiscais no médio/longo prazo, não tendo a Comissão quantificado o seu impacto. 

Benefícios Fiscais 

A Comissão propõe a reformulação dos Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), eliminando uns – benefícios associados à criação de emprego e à internacionalização, e a majoração dos custos com a aquisição de combustíveis - e fundindo outros, como os diversos apoios fiscais ao investimento. 

As propostas da Comissão vão em sentido contrário às propostas que a CGTP-IN apresentou em Setembro de 2012, que visavam a eliminação dos benefícios fiscais que isentam os rendimentos resultantes de fundos de capital de risco, de investimento imobiliário ou outros instrumentos financeiros, bem como as mais-valias realizadas por empresas estrangeiras e SGPS – numa perspectiva de introdução de maior justiça fiscal ao IRC. 

Bem pelo contrário, a ideia central patente neste vector do ante-projecto é generalizar a isenção das mais-valias e dividendos a fundos de investimento, empresas nacionais e estrangeiras e instituições de crédito não residentes, nomeadamente através do regime de participation exemption. A Comissão propõe, no fundo, eliminar as disposições do EBF para integrá-las na lei geral do Código do IRC. 

Em momento algum a Comissão propõe um alargamento da base fiscal, mas sim um alargamento das isenções aos rendimentos provenientes de investimentos especulativos e não produtivos, garantindo o aumento dos lucros das empresas que os realizam. As recomendações da Comissão vão inclusive no sentido de isentar de IRC os juros e outros rendimentos de capital imputáveis a entidades não residentes, tendo esses rendimentos sido gerados às custas dos trabalhadores e do povo português. 

Redução das obrigações acessórias em sede de IRC e da litigiosidade fiscal 

Outros aspectos que assumem relevância no âmbito da Proposta de reforma do IRC são, por um lado, a diminuição das obrigações acessórias previstas no Código do IRC e, por outro, a redução da litigiosidade fiscal relativa a este imposto. 

A eliminação de obrigações perante a Administração pública, e neste caso concreto perante a administração fiscal, insere-se no âmbito da chamada desburocratização, e anda normalmente associada à ideia de que estas obrigações são totalmente inúteis e representam apenas custos para as empresas (sendo curioso que o mesmo tipo de obrigações quando impostas aos cidadãos não são alvo de preocupações semelhantes, muito pelo contrário). 

Na realidade, muitas destas obrigações são os instrumentos que permitem às administrações públicas melhorar, controlar e fiscalizar o cumprimento da legislação por parte dos administrados e, neste caso concreto, dos contribuintes. A sua eliminação equivale, em muitas situações, à redução ou total eliminação de importantes formas de fiscalização do cumprimento das obrigações tributárias das empresas. 

No que respeita à preocupação de reduzir a litigiosidade fiscal, desde que não signifique qualquer restrição do acesso aos tribunais por parte dos contribuintes, poderia até ser uma medida positiva. No entanto, se analisarmos com mais cuidado as matérias sobre que incidem as alterações destinadas a evitar os conflitos judiciais, verificamos que há uma preocupação de uniformização em favor dos interesses das empresas, o que revela mais uma vez uma intenção de beneficiar apenas alguns em detrimento do interesse geral. 

Outras medidas propostas 

Além das medidas cujos objectivos e consequências já denunciamos, a proposta da Comissão de Reforma abarca muitas outras que, a serem implementadas, implicam uma forte erosão da base fiscal e, por conseguinte, a redução da receita fiscal do Estado. Medidas cirúrgicas como a redução do limite mínimo de participação a partir do qual variações do valor de instrumentos do capital próprio (de 5% para 2%), alterações ao tratamento fiscal dos activos intangíveis (patentes, etc.), alteração das normas que regulam os preços de transferência, alteração do regime de tributação de grupos de sociedades e em caso de concentração e reorganização de empresas, entre outras, são feitas à medida da vontade das grandes empresas. 

O impacto na receita fiscal – havendo muitas que nem sequer estão contabilizadas – será muito maior do que o que a Comissão apresenta (Anexo 2). 

Em conclusão 

As propostas constantes no ante-projecto de reforma do IRC são mais uma demonstração clara da escolha de classe do Governo. Ao definir as linhas orientadoras para a reforma, ao escolher membros da Comissão altamente comprometidos com os interesses do grande capital nacional e estrangeiro e ao dar a cara pela Comissão na apresentação do projecto, o Governo mostra que está disposto a garantir o aumento dos lucros das grandes empresas e os dividendos dos grandes capitalistas às custas dos trabalhadores e dos pensionistas. 

No global, o ante-projecto de reforma do IRC avalia uma perda de receita de 1 423 milhões de euros ao ano, a partir de 2018, o que contempla a perda de receita com a descida da taxa de IRC e a perda de receita resultante da erosão da base fiscal implícita em várias outras medidas (nomeadamente as alterações à política fiscal internacional, regime de tributação dos grupos de sociedades, entre outras). No entanto, a perda de receitas fiscais pode atingir valores muito superiores, uma vez que a Comissão não avaliou o impacto de várias medidas e subvalorizou outras (como o regime de reporte dos prejuízos fiscais ou à regulação dos preços de transferência). 

O Governo já admitiu que compensará a perda de receita fiscal através da redução da despesa do Estado. Os alvos serão as Funções Sociais do Estado – Saúde, Educação e Segurança Social. A troco de mais benefícios para o grande capital nacional e estrangeiro, o Governo propõe-se a enfraquecer os maiores pilares do desenvolvimento económico e social português. Os cortes astronómicos que o Governo prepara, com vista à privatização dos serviços públicos, representam um retrocesso de várias décadas na sociedade portuguesa, comprometendo seriamente o acesso dos trabalhadores, pensionistas e suas famílias a elementos fundamentais comuns aos países desenvolvidos: ensino público e SNS universais e de qualidade, e Segurança Social que proteja os cidadãos de situações de quebra ou ausência de rendimento. 

No seu conjunto, podemos apelidar a proposta da Comissão como dos maiores ataques aos direitos dos trabalhadores e pensionistas portugueses em benefício dos interesses das grandes empresas e grupos económicos. 

Anexo 1 

Quadro 1 – Empresas com materia sujeita a IRC e valor medio por empresa (2011) 

Escalões de volume de negócios (€) Nº declarações (empresa) com matéria colectável = 0 Matéria colectável (milhões €) Valor médio de matéria colectável por declaração (por empresa, milhões €)
0 1 324 114 0,086
= 0 4 409 194 0,044
[ 1 A 150.000 [ 80 265 835 0,010
[ 150.000 A 500.000 [ 42 781 942 0,022
[ 500.000 A 1.000.000 [ 14 733 611 0,041
[ 1.000.000 A 1.500.000 [ 6 313 434 0,069
[ 1.500.000 A 2.500.000 [ 5 662 569 0,100
[ 2.500.000 A 5.000.000 [ 4 468 854 0,191
[ 5.000.000 A 12.500.000 [ 2 937 1 298 0,442
[ 12.500.000 A 25.000.000 [ 951 1 082 1,138
[ 25.000.000 A 75.000.000 [ 648 1 714 2,645
[ 75.000.000 A 250.000.000 [ 198 1 449 7,319
[ Mais de 250.000.000 [ 90 3 873 43,034

TOTAL 164 779 13 969 2 812

Empresas com matéria colectável Nº de empresas % do total Valor médio da matéria colectável [1,5 M€ A 7,5 M€ [ 846 0,51% 3,739 [Mais de 7,5 M€[ 90 0,05% 43,034

Fonte: AT, 2012 

Anexo 2 

Resumo das principais medidas do ante-projecto de Reforma do IRC 


10 de Setembro de 2013

Notas 

1. Oscilaram entre 19% e 17% no período de 2009 a 2011 

2. Com volume de negócios até 1 milhão de euros 

3. Assumindo a descida da taxa nominal de IRC para 17%; somaram-se todas as parcelas quantificadas no relatório. 

4. Addressing Base Erosion and Profit Shifting, OCDE 2013 e Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting, OCDE 2013.

5. Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting, OCDE 2013.

6. Fernandez, Rodrigo, McGauran, Katrin e Frederik, Jesse, Avoiding tax in times of austerity.

7. Publicação "Empresas em Portugal 2011".

8. Agosto 2013, INE. 

9. Correlação entre as duas variáveis é de apenas 0,1 (1 para correlação positiva máxima; 0 para inexistência de correlação).

10. Para investimentos até 5M€.

11. Fonseca, Miguel, Mendonça, António e Passos, José, Efeitos do investimento directo exterior sobre a Balança Comercial Portuguesa, 1996-2007, 3º Congresso Nacional dos Economistas.

12. Estatísticas de IRC da AT, publicadas no Portal das Finanças.

13. Considerando a cobrança actual da derrama municipal.
14. INE. 

15. 24,4 milhões derivados do novo regime simplificado e 11,8 milhões derivados da subida do Pagamento Especial por Conta.
16. Redução da percentagem de participação mínima a partir da qual as variações ao valor dos instrumentos de capital não sejam considerados para efeitos fiscais (5% para 2%); redução da percentagem mínima de participação a partir da qual uma empresa com residência em território português vê os lucros, reservas e mais valias que recebe ou distribuí isentos de IRC (de 10 para 2%); aumento da participação de 10 para 20% para que uma empresa seja considerada como tendo uma relação especial com outra, o que determina que muitas fiquem fora do regime de controlo de preços de transferência – umas das formas usadas pelas empresas multi-nacionais para diminuir a tributação.

17. Issues in International Taxation and the role of IMF – FMI, Junho 2013 Addressing base Erosion and Profit Shifting – OCDE, 2013. 

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